quinta-feira, 29 de julho de 2010

Lunabranca




LUNABRANCA

Branco voraz de lua invadindo a rua, os copos vadios, rastros de falas, vidro laser de corte limpo, metade certinha da cabeça aos pés.
Beberágua não achei, o que é o que é? Com os óio arregalado parecendo algum ladrão.
Bicho brabuivando na prateleira da estante. É bibelô de preta velha que veio da África, moldado de banzo, bordado de bronze.
Cadê água que tavaqui? Marbebeu. Pororoca passou molhando o peito de açúcar ou de sal, não sei. Só sei que invadiu meu cerrado de solcaliente e assustou de morte o já conformado seco das planícies.
Ó mãe! Quantas vezes a gente morre? Morre de paixão, morre de nãossabê, morre de alegre, só não morre de dor ou de velho; depois morre de rir.
E quantas vezes a gente vive? Viver é só uma vez e sempre, que é de ilusão.
Hoje a minha fome nem pediu licença pra chorar. Saiu portafora e foi esvaziando o coração pelos olhos. Eu fiquei de janelaberta entornando a alma na calçada, calçada virando mar, mar virando ondas, espuma e sal rolando ladeirabaixo.
Ó mãe! Olha o branco da lua! É... tá fazendo sombra no chão; tá clara demais; tá olhando pra mim.
Assombração.
Aqui tem morcego, tem cheiro de mato ardendo, tem leveza de bambu. Quando a noite vai ficando madura, o silêncio abre uma boca enorme e exibe um céu de estrelas debutando nos olhos da gente.
Mas esse filme já passou. E ficou colado na memória, pregado na pele, afundado nas narinas; e eu parada, “com os óio arregalado parecendo algum ladrão”.

Texto de InesNeves, Todos os Direitos Reservados

segunda-feira, 26 de julho de 2010


IRENE DE MELLONEVES,
Quem foi você

Que passou pela minha longa curta vida, cheia de dores e dotes trajando panos coloridos, transparências e brilhos em pele de marfim, paixões avessas em forma humana?
Mulher esquerda, tropeços de rainha em cascalho solto ou predestinado bicho do mato, aprendiz de mundo torto a invadir seus estados alados, quem foi você?
Nascida de uma barriga em mundo grave, grave/idade de planeta velho das dores mais comuns ou contundências de facas e flores, verde aprendiz de jogos mortais e eu não conheci você..
Seu tempo de existir compõe hoje progressiva lista de obituário, nomes ou números em silenciosa procissão de retirantes que o tempo engole e obscurece, e eu penso.
Irene chegou compondo a trupe desse palco magirreal, brigou, amou, se machucou e esfolou a alma. Marcou passagem desfilando em estrada antiga o seu circo deslumbrante de gente pobre e de tanto carregar caixões azuis em cortejo de crianças, acabou ficando alegre/triste.
Me deixou assim meio sem centro malentendendo sua ida e em verdade eu não sei quem foi você.
Tocam jazz. Aquela quaresmeira novamente pronta para floração, celebra e marca mais um janeiro de tantos que virão de seu adeus. Eu aqui, coração branco olhando infinitudes, árvores, capim e pássaros. Você um dia se deslumbrou com as cores e flores desse tropical recanto a exalar luz boa, mas definitivamente não mais podemos compartilhar dos bálsamos dessa vida.
Quem foi você que nos descortinou as deslumbrantes e inusitadas paisagens dessa vida como quem oferece simplesmente água? Caminhou conosco sobre os desacertos do inusitado e compôs poemas sem perder o rastro da fonte mais pura, sem perder o coração. Guardo em zêlo esse baú precioso de espólio bento e o aperto contra o peito, mas parece que vai nevar.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

IRENE jovem©

12 de agosto de 1917-12 de Janeiro de 2007.
Irene estaria completeando seus 93 anos de idade no próximo dia 12. Aos 17 publicou o primeiro livro e nunca mais parou. Trabalhou nos seus escritos até os últimos dias de sua existência e deixou obra extensa, grande parte ainda a ser publicada.


Abri mala pequena, frasqueira com divisórias e cantos. Me apareceu um pente grande com um pouco de poeira, fios de teus cabelos em hibernação, testemunhas vivas de tua ausência., de tua morte. Cabelos não se desfazem no mesmo compasso do corpo. 
Revivi teu gesto ao se pentear, cabelos brancos cacheados, esmero e determinação. Me pareceu voltar no tempo ou o tempo voltou em mim e te trouxe bem perto, mistérios presentes a me entontecer, Irene mãe. Você querida, em constante vigília nos meus dias vagamundeantes de torpor do nada saber, certamente a gravitar sobre os canteiros sonhados que não vingaram. Acordo a mente e te seqüestro em passado/presente, mãos, pés, gestos, nariz afiladinho de vestal caída em campo de contundências. Braba vida de incautos arremessos para o quase nada e tu ainda acreditavas.
Quero, mãe Irene, guardar de ti a força do querer. Herdar de ti a crença, o terço, o arquivo de sonhos que eram teus olhos. E depois, um dia entender nossos caminhos de pedras e ardores; nossas mãos marcadas dos cajados que foram se esfolando pelas estradas e encruzilhadas de armadilhas, nossa cumplicidade de umbigo justificando tudo.
Dia abafado de sol quente em estação de inverno pelo avesso. O tempo, dono de tudo, antevendo o arquear das minhas costas maduras e ainda nada sei. Apenas assisto ao compasso dos mendigos da luz que desfilam buscas e incompreensões, eu também catando Lilases e Edelweiss em pedra bruta, esperando brotar água limpa nos grotões das minhas saudades e devaneios. Herança tua, rastros teus, Irene.

Registros de filha tua em dia 8 Internacional da Mulher
Texto de InesNeves, todos os direitos reservados. 

sábado, 17 de julho de 2010

DE TRAMAS E ENTENDIMENTO©

Agradecer pelo dia de hoje,
de ontem e o de amanhã. Por tudo o que aprendi pelo prazer ou pela dor. Pelos meus olhos que não viram espólios de guerras, mas a paz das poderosas noites abobadadas sobre minha cabeça, as nuances e luzes deste planeta de quase azul. Agradecer pelas minhas mãos que mal tocaram feridas. E que, corpo ainda quente de minha mãe, puderam pousar sobre sua fronde e sentir o calor se esvaindo enquanto se deixava vazar a alma. Por poder acolher, por tocar e ser tocada.
Pelo sentir acordes ou retumbos, chuvas e raios, sinfonias generosas da terra e o reverberar das vozes amadas ou não.
Agradecer pelos arrepios e pele, pés que dançam, correm e aportam. Pelos odores infindos invadindo as narinas e cérebro, resgatando lembranças ou formando o agora. Cheiro de neve, cheiros de tempos marcados, saudades impressas em folhas e panos, letras e formas. Por tanta história bonita, pelos mimos também da vida, tanto coração extravasado em abraços plenos.
Pelo aprendizado incorporado quando tudo parecia só dor, pela gargalhada resgatada sob os véus da desilusão, a risada grande diante de meu próprio ridículo e essa divina mão quotidiana estendida e pronta que nunca me negou resgate.
Agradecer e esperar dos tempos os seus traçados, abrir o coração para as bênçãos por vir e deixar latente o espaço para mais sabedoria, sempre. Receber da vida o despertar de cada dia que vem pleno e vem de graça, pela graça. Resguardar no peito aquela criança original e, nos desfechos das estórias processadas nem o mais leve rancor ou mágoa deverão permanecer; pés lavados e alma limpa.
O que parece claro, pode ser Maia presença. O que doer, deve ser aprendizado. O que surpreender, na verdade estava escrito e o que não vier, certamente já passou.
Sou grata.


Texto de InesNeves, Todos os Direitos Reservados.

sábado, 10 de julho de 2010

Mutação©

Estou mudando. Mudando de idade, de fé, de era e de coração. Estou sentindo todas as dores do crescimento, ossos, nervos, músculos se tensionando e se estranhando na busca de encontros e inteirezas, enquanto o tempo me pede vigilância e prudência nesse estado de passagem.
Como se o meu maduro corpo novo demandasse renúncias de pele e apelos, acordo pelas madrugadas compondo versos de não ser e me lanço em contendas que me mutilam os sonhos, as crenças, tudo girando nos vórtices duros e sem paixões de alguma sina que malentendo. E dói. Entontece. Taquicardias se sobrepõem à minha moribunda alegria de viver e meu coração sai chutando restos e tocos de lembranças do que poderia ter sido. E quanto mais eu teimo em ser e entender, mais cortes de faca fina me marcam o destino. Me esquivo de algum golpe na cara do meu dia, me aprumo, reflito e me contenho porque quero sobreviver ao caos já estabelecido.
Mas como a mudança pode nos lacerar! Desapegos, paciência, humildade, entregas, tudo cruamente pessoal. Não vejo mão amiga amorosa em disponibilidade, já que todas as mãos do mundo se ocupam nos seus particulares remos de naus em desgoverno, planeta, país, cidade e corações se arvorando em tempos do não tempo.
Mas sei que estou mudando, como as baratas e formigas em mutação nas idades e eras, intuitivamente criando couraças e espertezas.


Texto de InesNeves. Todos os direitos reservados.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

FILHOS DE ONTEM©

Filhos de Ontem


Galopando em corsários tontos te procuramos, filho meu, noites e dias sem sabermos se te sondávamos ou se te velávamos. Em insanas buscas e apelos atentamos indecifráveis ecos em vales alienados ou em cais esquerdos a te espreitar.
Apear, abandonando a fé? Nos aquietarmos, impossível. Acreditando sempre, ousando buscas até à mais tênue linha entre as coisas perceptíveis e os intangíveis mistérios de outras paragens. Mães da Praça de Maio e suas fraldas nas cabeças, Zuzus Zumbis de asas mutiladas se debatendo frente a portas lacradas, tantos pais de outras fatalidades buscando rastros de seus filhos perdidos, em marcha dolorosa e impotente.
Quem sabe um dia, entre silêncios e amargores, quando a tortura instalada nos cantos do existir já nem mais puder doer, sonhemos com um desfecho bom a nos acordar os sentidos. Talvez nossos corações sejam agraciados com o grande prêmio de um tempo acreditado e a explosão do reencontro acenda confortante lume em nossas vidas modificadas.
Mas talvez também o punhal já tão próximo de nossos peitos venha nos sangrar de vez as esperanças. Bem possível. Num dia das mesmas fadigas em que tudo parecerá tão comum, saberemos da implacável e definitiva perda e nós, pais das esperas, nos renderemos. Apearemos, entregaremos as armas e apelos para procedermos à incorporação do último ato da dor maior. Muita. E a saudade já entrincheirada em nossas existências, se agigantará extrapolando e atropelando todos os espaços desse planeta que mal nos cabe. Taquicardias descompensando cada gesto, a precariedade de nossas esperanças escancarada diante da verdade última, filho meu, descartados os arremedos de resgate de tua presença.
Corsários cegos de gastas ferraduras após tanta busca em galopes alucinados, extenuados. Nós, vencidos cavaleiros sem armas a incorporar as definitivas notas de desenlace e tu, filho, compondo as legiões de anjos seqüestrados, arrebatados, aliciados ou misteriosamente evadidos em pungente silêncio.
Cortados ao meio seguiremos sem pouso, almas sem repouso. E nunca mais o doce dos amores plenos, mas o sabor travoso de tua perda, esse sim, perdurará. Uma dor em nós que avançará pelos tempos de nossas existências em trilhas do nada entender.
Passarão as guerras e os amores mas o vazio não passará. Ficará esse banzo amalgamado nas cruzes das ausências, cicatrizes reticentes marcando indeléveis memórias em eterna vigília. E nossas almas meio penadas, meio sem pátria, vagarão na busca, filho meu, de um Deus que nos acolha e console. Uma mão benfazeja espalmada sobre nossas testas febris para arrefecer o ardor de nossas pupilas e transmutar essa água já salobra aprisionada e estagnada em nossos olhos.


Aos pais de filhos evadidos.
                                                     Texto de Inesneves - todos os direitos reservados.